quarta-feira, 10 de junho de 2009

Relgião

Será o sal que não salga, ou a terra que não se deixa salgar?

Vivemos em terras viciosas, onde o progresso tecnológico enfraquece o poder que as religiões outrora tinham. A maior paixão que o homem pode almejar, a fé, dissipa-se progressivamente entre pecados e ciências.

São várias a religiões por esse mundo fora. Todavia é possível estabelecer pontos de concordância entre todas elas. Talvez tudo o que as separa não seja maior do que aquilo que as une. Perdoe a sensatez que tenho em falta, mas como canta Gabriel o Pensador: “as orações e os deuses variam mas o alívio que eles trazem vem do mesmo lugar”.

Há muitas doutrinas e todas elas com a mesma função: impedir que a terra se corrompa. Todas elas têm função de sal, na medida em que tentam preservar este mundo que não passa de um palco de malevolência.

Porém interrogue-se: conseguem elas atingir o seu fim térreo? Quer-me parecer que não. Elas usam a ignorância que pesa sobre as almas humanas de forma a apoderarem-se delas, retiram-lhes a consciência e manipulam os seus actos. A religião impera como forma de controlar as massas.

Dir-me-á que exagero (confesso: talvez), no entanto as religiões apenas sobrevivem quando conseguem impor uma forma de pensar estável e dogmática, sendo a resposta a tudo o resto a peremptória fé. Nem de outra forma resistiriam à erosão do tempo e do falso progresso.

Rio-me ao ver as religiões perderem cada vez mais crentes para a ciência. A ciência é todo o raciocínio fundamentado e demonstrado de forma rigorosa, não deixa perguntas por responder, contrariamente às religiões. Dado que o Homem é um ser racional, naturalmente vê a ciência como sendo mais fidedigna.

O facto do sal não salgar, não impedindo que a terra se perca em vícios e pecados mortais, dificilmente se resume exclusivamente à inércia dos temperamentos humanos que parecem andar corrompidos. Aliás fundamentar tal afirmação é inconcebível. A realidade é que este apenas prefere solo firme a gelo fino. E isto, mais que lógico, é humanamente compreensível e aceitável.

Como disse Padre António Vieira, pode ser um de vários problemas (ou todos eles) a provocarem esta descrença perante o caminho da salvação: “Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhe dão, a não querem receber [coisa mais difícil de crer, como já verificámos]. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo...”[1]

Reflectindo sobre a aproximação do Homem a Deus, temos de ter em conta dois parâmetros que, não sendo únicos, serão certamente fundamentais: a redenção e a tranquilização perante a inverosimilhança da morte.

Desde logo aferimos que, em relação ao primeiro parâmetro, uma pessoa de honra e coração, que não tenha amor a coisas tão vis e precárias como haveres materiais, de uma rectidão fundamentada pelas suas acções quotidianas, não necessita de ser crente para seguir as pisadas do Bem, do amor e do perdão. Consideramos inclusive a possibilidade de atingir o perdão divino sem nunca ter orado. É realmente discutível se uma pessoa de bem, mesmo não sendo crente, estará destinada a sofrer suplícios eternos quando teve, em vida, a humildade de se arrepender por todo o mal que possa ter provocado.

No que diz respeito ao segundo parâmetro a reflexão é bem mais complexa e profunda, implicando o problema da morte, o problema de reconfortar aqueles que enfrentam a perda, a fatalidade do destino. Nas seguintes linhas permitir-me-ei a pensar o que há de pensável no impensável, já que as religiões se demitem desta obrigação da existência humana: pensar a morte.

A atitude das doutrinas é essencialmente reconfortante. Mesmo ao transtornar o crente com as penas eternas, trata-se sempre da mesma intenção: tranquilizar. O próprio tratamento dos cadáveres explica a forma como valorizamos a vida e falseamos a morte. Digo isto porque o pensar a morte é, de facto, reflectir sobre a vida, ou seja, sobre a contínua niilização desta, sobre a eterna e atroz condição do ser.

É fundamental ver o problema na sua forma básica: a nossa sociedade cristã integra os mortos de modo a tranquilizar os vivos, numa clara afirmação de que a niilização é falsa aos olhos da Igreja. Apesar de concordar que a Humanidade é, indubitavelmente, constituída mais por mortos do que por vivos, não concebo o facto de não haver horror ao cadáver que está num caixão aberto expondo os restos mortais a piedosos olhares humanos.

A realidade em questão é o culto aos mortos. Há no cristianismo toda uma necrofilia. O próprio católico é necromante, como é dito por Vladimir Jankélévitch: “o católico gosta mais de um cadáver do que de um vivo”[2].

O morto acaba por ser respeitado, não pelo que foi ou fez em vida, mas porque é, agora, um corpo inanimado. Faz sentido? Não. O ser humano tem cada vez mais dificuldade em aceitar esse algo inverosímil ao qual chamamos morte. Daí advém o respeito ao morto. Proferir certas palavras na presença do cadáver seria conspurcar a memória da pessoa que o ocupou. E pensarão muitos de vós: com efeito, assim deve ser! Pois, para vossa surpresa, discordo. Considero errado e hipócrita o facto da imagem de um indivíduo ascender a outro estatuto moral e até social. É ridículo escolher entre funerais de primeira e terceira! É ridículo tudo o que é feito para mascarar a morte, assim como usá-la para mascarar uma pessoa.

Tão grave é o escândalo mas a circunstância o faz maior…

Há toda uma espécie de religião da morte que explica muitos traços da civilização cristã: o amor da morte. Comecemos por ver os cemitérios. São os locais mais organizados de uma cidade, onde avenidas áleas se cortam em ângulos rectos, onde jazigos suportam cadáveres, que deviam estar na terra. A morte é vista, não como o fim, mas como a passagem para outro algo. Como sendo um mero passo no qual a integridade do cadáver é cada vez mais importante. “Do pó vieste e ao pó tornarás”, esta é a verdade. A preocupação de não cremar, de conservar o cadáver amortalhado, vestido num belo fato, pompa e circunstância e até uma parada musical como se tem vindo a vulgarizar num ou noutro Estado dos USA. Não é tudo isto hediondo? É óbvio sim!

A morte é contra natura. Mesmo sendo a passagem para outro mundo, amar a morte, em qualquer situação, é amar a própria negação. Ora, o amor à própria negação explica a violência, o ódio e as guerras. Todos os aspectos de selvajaria são o inverso do Cristianismo, em específico, a religião do amor, assim como sãs também o inverso do Islão. Digam isso aos homens bomba!

O Cristianismo exibe um inverso, uma face nocturna; a face oculta do cristianismo é o seu amor à morte. Ama-se a morte porque ela representa a vida. Agora sou eu quem está confuso! Aponta-se o dedo aos extremistas islâmicos que se explodem, pintando as ruas com as suas vísceras, diz-se que são loucos por colocarem o além à frente da vida terrea. Agora pergunto: não foi isto que a religião do amor pregou aquando das cruzadas? Não é isto que o cristianismo prega quando nega os prazeres carnais aos seus crentes? É claro que usar o princípio da ressurreição (ou o que lhe quiserem chamar) como forma de excluir a morte como o último fôlego do ser, transformando-a como parte intermédia da vida, continuará a haver quem se convença de que vale a pena matar e morrer.

Em suma: a débil doutrina maioritária que assombra a nossa sociedade exibe-se como forma de controlar as mentes, as consciências, isto é: a moral de todo um país. Perguntar-me-ão: se as outras são mais verdadeiras, se as outras não representam um caminho de ignorância e entorpecimento de massas? Leiam “Sidhartha”, do “Nobel” Herman Hess, e compreenderam a minha posição em relação a tudo isso.

Limito-me a concluir que o Cristianismo, mesmo quando refugiado na fé, dá azo a diferentes paradigmas paradoxais entre si.

A questão que se continuará a colocar é: será o sal que não salga, ou a terra que não se deixa salgar?

Tendo em conta que há pessoas de Bem que não vivem na sombra de doutrinas religiosas, avançarei uma resposta em tom de pergunta: qual o interesse da terra em deixar-se salgar!?

Muito sabia Padre António Vieira, que vivia eterno conflito com o Vaticano quando disse: “Deus deu aos homens o uso da razão, mas são os homens razão sem uso”. No entanto, ainda mais sabem as doutrinas quando se aproveitam disso.



[1] Sermão de S.to António (Aos Peixes) – Padre António Vieira

[2] Pensar a Morte

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